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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Violência à mulher é problema cultural; especialistas cobram campanha

Thais Sabino
08 de Outubro de 2013

Adriana Tamashiro, 31 anos, foi espancada pelo parceiro a 20 dias do casamento. M. R. P., 26 anos, foi agredida grávida de seis meses pelo marido. T. N. S., 47 anos, passou 20 anos sofrendo agressões verbais e físicas dentro da própria casa. Elas representam pequena parcela das mulheres que sofrem violência praticada pelo companheiro. Recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concluiu em um estudo que a Lei Maria da Penha não reduziu a mortalidade do gênero. Um dos motivos, segundo especialistas entrevistados pelo Terra, é a omissão à denúncia de algumas mulheres, mas o principal é que “a lei não tem varinha de condão, é preciso fazer campanha por uma cultura de paz”, afirmou a psicóloga Roseli Goffman.

Para a também conselheira do Conselho Federal de Psicologia, a lei não pode levar a responsabilidade por um problema de comportamento secular do Brasil. “Ela (Lei Maria da Penha) é um avanço e tem que continuar. O que a gente precisa é trabalhar são outras ferramentas para a mudança da mentalidade e imaginário social”, disse.  Em uma sociedade à qual Roseli classifica como “falocêntrica” e enraizada pelo ódio e machismo - “ocupamos o sétimo lugar no feminicídio”, comentou – precisa de uma “campanha nacional pela diminuição da violência contra a mulher”, disse a psicóloga Janaína Leslao.

Para Janaína, que atua na causa há anos, assim como há um trabalho grande de combate à violência no trânsito, é preciso atuar reeducação comportamental de homens e mulheres. “A gente não vê uma campanha de massa, na mesma proporção que a de trânsito, pela mudança da atitude dos homens em relação às mulheres, por uma convivência pacífica e igualdade de direitos”, criticou. A violência doméstica não é um problema de casal, mas, sim, social. “Devemos meter a colher em violência contra a mulher”, acrescentou.

A gente não vê uma campanha de massa, na mesma proporção que a de trânsito, pela mudança da atitude dos homens em relação às mulheres
Janaína Leslao
Psicóloga

A designer Adriana foi espancada no próprio apartamento. “Ele quebrou metade da casa, a vizinha ficou em pânico e ligou para o porteiro, mas ele disse que não podia fazer nada se eu não pedisse ajuda pelo interfone”, contou sobre o ocorrido do dia 18/9. Ela tem apenas alguns flashes de memória do dia em que, depois de uma briga, o ex-noivo a seguiu inconformado com o fim do relacionamento. “Ele me chutava, me dava socos, minha vizinha ouviu ele me jogar na parede e gritar que ia me matar”, relatou.

O casal estava junto há pouco tempo, tudo foi muito intenso, segundo ela: estavam juntos há dois meses e já moravam juntos. Mesmo assim, após um primeiro mês “lindo”, na primeira discussão ela percebeu a agressividade mais intensa do parceiro. Na segunda, vieram as agressões verbais que a motivaram a desistir do casamento. “Talvez tenha sido ingenuidade minha imaginar que ele não seria capaz de me levantar a mão”, disse. Com o apartamento todo ensanguentado, o ex-noivo tentou deixar o prédio, mas foi impedido pelo porteiro. Adriana chamou a polícia, ele foi preso em flagrante, pagou fiança e está em liberdade.

Casos como o da dona de casa M. R. P. são bastante comuns, segundo a delegada Celi Paulino Carlota. M. R. P. namorou por anos na adolescência com o agressor, ficou um tempo separada dele e depois o casal decidiu morar junto, em 2010. “Nos primeiros meses ficou tudo bem, depois, qualquer problema que surgia ele não queria conversar, começava a brigar e a me ofender”, lembrou. Nas situações eles se separavam, mas meses depois voltavam a morar juntos. “Ele me humilhava, falava que eu não prestava para nada, que eu era um lixo e nunca ia ter nada na vida”, relatou M. R. P.

Recentemente, a discussão foi mais além: depois dos xingamentos usuais, ele a jogou no chão, bateu no rosto, puxou o cabelo e apertou o pescoço. Quando a polícia chegou, chamada pelos vizinhos, o agressor já estava indo embora e ela preferiu não denunciar. “Falei que estava tudo bem, porque já vou passar pelo processo de divisão de bens e pensão, se ele perde o emprego como vai ajudar eu e a minha filha?”, justificou. Segundo ela, os policiais questionaram os arranhões no rosto e pescoço dela, mas ela insistiu que não havia ocorrido agressão.

Elas sempre querem dar uma chance, é uma coisa maternal, falam que não querem prejudicar o pai dos filhos, que ele perca o emprego ou vá preso
Celi Paulino Carlota
Delegada titular da 1ª Delegacia da Mulher

A segunda chance

Celi contou que as mulheres vítimas de lesão corporal, ameaças e ofensas chegam à delegacia abaladas em dúvida se devem denunciar ou não. “Elas sempre querem dar uma chance, é uma coisa maternal, falam que não querem prejudicar o pai dos filhos, que ele perca o emprego ou vá preso”, disse a delegada. A orientação da profissional, no entanto, é que a impunidade pode levar à morte da vítima e das pessoas próximas também. Segundo ela, o agressor passa por um período de arrependimento, promete melhoras, mas volta cometer os erros. Ela está recebendo casos em que a violência se estende aos filhos com mais frequência.

A missionária norte-americana T. N. S. conheceu um advogado brasileiro há cerca de 20 anos nos EUA, eles se apaixonaram, se casaram e se mudaram para o Brasil. “Foram mais de 15 anos de violência, ele destruiu a minha alma”, contou. T. N. S. sofria humilhações em público, ouvia que não servia para nada e que mulher era só para sexo. A primeira agressão física veio com quase dois anos de casamento: um soco, uma chave de braço e puxões nos cabelos. Depois da primeira vez, a situação começou a acontecer com mais frequência e, grávida da terceira filha, ele rompeu a bolsa de água de T. N. S. com um soco na barriga dela.

Foram mais de 15 anos de violência, ele destruiu a minha alma
T.N.S (Vítima)

Ao todo, eles se separaram três vezes, mas os pedidos de desculpas do agressor sempre convenciam T. N. S. A última briga fez com que ela ameaçasse denunciá-lo. Como resposta, o agressor disse que tiraria a guarda dos quatro filhos – três meninas e um menino – de T. N. S. Ele conseguiu. Segundo ela, o ex-marido juntou um laudo médico falso que alegava a insanidade mental da mulher e obteve o direito de ficar com os filhos. “A culpa é minha porque eu demorei a tomar uma posição. Se eu tivesse denunciado antes não perderia 20 anos da minha vida e as minhas crianças. Quanto mais tempo você fica na situação, mais coloca as pessoas em perigo”, afirmou T. N. S.

A denúncia

Um das razões para T. N. S. não ir à polícia era o medo de punição. Ela desconhecia a Lei Maria da Penha, de proteção às mulheres contra a violência doméstica. A lei, em vigência desde 2006, prevê medidas protetivas como o impedimento do agressor de se aproximar da vítima, fazer contato telefônico ou pela internet sob o risco de prisão, além de a mulher poder pedir o afastamento do companheiro do lar e alimentos provisórios. “Ela consegue tudo isso já na delegacia”, garantiu Celi. A denúncia também pode ser feita diante de ameaças e agressões verbais, acrescentou.

O primeiro passo após uma agressão física é procurar um pronto-socorro caso existam ferimentos. Depois, a vítima deve ir até à delegacia da mulher e abrir o boletim de ocorrência. Foi o que fez Adriana. Logo após a polícia prender o agressor, ela foi para o hospital e seguiu ao Instituto Médico Legal para fazer exames. Na delegacia, ela estava certa de que não deixaria a violência passar impune, abriu um boletim de ocorrência e agora aguarda ser chamada para depor e fazer o reconhecimento.

Segundo a delegada, as mulheres que buscam ajuda são cada vez mais jovens e, de acordo com Janaína, cerca de 90% são agredidas por uma pessoa íntima com quem se estabeleceu em algum momento uma relação de afeto. Além do apoio policial e jurídico, segundo Janaína, centros de atendimento à mulher ajudam na parte psicológica e recuperação da autoestima. As instituições mantêm sigilo e possuem equipe multidisciplinar, completou.


Disponível em http://mulher.terra.com.br/vida-a-dois/violencia-a-mulher-e-problema-cultural-especialistas-cobram-campanha,93c1414a7cf71410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html. Acesso em 10 fev 2014.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Um olhar de dentro: apontamentos iniciais acerca da transexualidade

Glória W. de Oliveira Souza

Resumo: O que é o transexual senão um objeto simbólico intrigante. Com sua aparência sedutora, é parte integrante do imaginário coletivo, em que os profissionais cuidadores ligados a transexualidade o vejam somente pela via natural, ou seja, biológica-genital como ponto central, e fazem, a partir de uma visão particularizada, usando-o como símbolo, o que o transforma em sintema. Hoje a transexualidade está tematizada, como fruto da acumulação e da onipresença, e não diz respeito somente à difusão quantitativa, mas também ao fato de o saber público – o conjunto de conhecimentos, opiniões e atitudes difundidas pela comunicação de massa – transformar em caráter particular, já que o aspecto visual do ser transexual tem enorme importância, pois a visibilidade (que é a qualidade de ser visível) é posto como único atributo. O que se percebe, então, é que a tematização continua alimentando o espaço na mídia e a economia: a abordagem do tema mais confunde do que esclarece. Identidade de gênero e orientação sexual quase se funde. As ciências sociais, que deveria se preocupar com a compreensão dos casos particulares e não com a formulação de leis generalizantes, como fazem as ciências naturais, também não dá conta da temática. E o tema não é novo. Já no século XVI (Renascença), o médico Mato Lusitano pesquisou sobre casos de partos estranhos, transexuais e mudanças de sexo e isto lhe valeu a perseguição da Inquisição. Sabe-se que os transexuais são minoria dentro de um segmento maior, e ainda enfrentam problemas, como constatou a Fundação Perseu Abramo sobre a existência ou não de preconceito contra essa população no Brasil. Enquanto isso, mídia e militantes persistem com discursos racionais, em vão, pois Dichter (1970) afirma que “a racionalidade é um fetiche (...) nossa cultura não nos permite admitir a verdadeira irracionalidade como uma explicação de nossa conduta. E, no entanto, a maioria dos sistemas religiosos e políticos, assim como aspectos da conduta humana, tais como a lealdade, o amor e o afeto, são todos irracionais”. O artigo finaliza propondo que, agora sob o manto da neurociência, o conhecimento sobre a transexualidade no século XXI vai tematizar novos corpus dentro do humanismo pela inserção social e político. E para isso será preciso um novo olhar: para os microssinais e nanossinais, pois, a transexualidade não existe abaixo da linha do umbigo. O artigo, como capítulo, faz parte do livro "Minorias Sexuais: Direitos e Preconceitos", organizado pela professora  Tereza Rodrigues Vieira e lançado pelo Editora Consulex (http://www.consulex.com.br/item.asp?id=1339)

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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A invenção da mulher

Marcus do Rio Teixeira

A sexualidade humana constantemente é explicada com base no mecanismo hormonal e em modelos animais. Desse ponto de vista, as coisas são essencialmente simples – homens e mulheres seguiriam condutas que visariam a reprodução da espécie, comparáveis às dos outros animais sexuados. Cotidianamente, porém, a realidade desmente tal hipótese. 

Mamíferos, aves e peixes apresentam comportamento invariável durante o período do acasalamento, que consiste na emissão de determinados sinais – visuais, sonoros, olfativos – facilmente reconhecidos pelo indivíduo do sexo oposto. Na natureza, portanto, não existe possibilidade de mal-entendido; os únicos problemas que os casais enfrentam são de ordem material, como densidade demográfica da espécie em sua região. No reino animal não há sofrimento psíquico causado pelo relacionamento sexual. Não se ouve falar de peixes apaixonados, elefantes em crise de meia-idade ou leoas querendo discutir a relação.

Em contrapartida, na espécie humana, não há uma conduta unívoca para a aproximação sexual; além disso, os sinais emitidos por cada um são ambíguos tanto para seu parceiro como para si. A própria linguagem, que supostamente serve para a comunicação, é a principal fonte desse mal-entendido. Quem nunca teve a sensação de que o(a) parceiro(a) não compreende nada do que lhe é dito? Permeada de linguagem, nossa sexualidade perde as certezas e o objetivo natural da reprodução da espécie. Longe do Éden sexual imaginado nostalgicamente por nossos cientistas, ela é marcada pelas incertezas e pelos conflitos inerentes ao humano. “De todos os animais ofalasser [o ser falante] é o único que possui uma sexualidade infeliz. Não somente complicada, mas infeliz”, comenta o psicanalista francês Charles Melman.

Édipo feminino

Uma vez que a linguagem nos afasta de uma sexualidade natural, determinada pela biologia, o que definiria então a feminilidade? Sabemos que o fato de uma pessoa nascer com um par de cromossomos XX significa que se trata de uma fêmea da espécie humana, mas não garante que venha a ser uma mulher. Se o real do organismo não fornece essa garantia, o que constituiria a especificidade da posição feminina? Poderíamos pensar que tal posição nada mais seria do que a assunção, pelo sujeito, das representações do feminino que a cultura lhe transmite. Sabemos, porém, que tais representações variam histórica e geograficamente. Seria então a feminilidade uma colagem imaginária de modelos impostos, sujeita a oscilações de tempo e lugar? Qual o papel da linguagem na constituição da posição sexual?

De acordo com Sigmund Freud (1856-1939), a assunção, pelo menino e pela menina, de uma posição masculina ou feminina ocorre ao final de uma série de investimentos libidinais e identificações com o casal parental (ou com os adultos que cumprem esse papel), que ele denominou Édipo, tendo como modelo o mito grego. Freud destaca a importância no Édipo de um elemento simbólico que ele chamou, novamente segundo uma referência clássica, de falo. Desde o início ele esclarece que, embora o órgão masculino seja uma das formas assumidas pelo falo, este não se reduz ao pênis. Em uma equação simbólica, outros objetos da realidade podem ter valor fálico, como o bebê para a mãe, as fezes como objeto de dom ou ainda o dinheiro. O inconsciente não reconhece a díade homem/mulher, mas apenas fálico/castrado.

A saída do Édipo masculino em sua forma mais simples se dá, grosso modo, pela renúncia do menino à mãe como primeiro objeto do desejo devido ao temor da castração. Ao identificar-se com o pai, que ocupa a função de agente interditor entre a mãe e ele, o menino adquire a possibilidade de exercer sua virilidade com outras mulheres, respeitando o tabu do incesto. Mas é o Édipo feminino que constitui motivo de embaraço para Freud; ele logo percebe que o percurso da menina em direção à sexualidade adulta não é simétrico como o do garoto. A mudança do objeto de desejo (a mãe é também o primeiro objeto de desejo para a garota) para o pai e a própria saída da situação edípica são questões problemáticas.

Ao final, Freud destaca o ressentimento da menina em relação à mãe por não encontrar do lado dela um elemento simbólico que possa lhe garantir o acesso à feminilidade. A relação entre mãe e filha, portanto, seria sempre um tanto tensa e marcada pela reivindicação, traços que, segundo ele, se repetiriam com o primeiro homem com o qual a mulher mantivesse um laço conjugal.

Portanto, enquanto a masculinidade é da ordem da transmissão, a feminilidade diz respeito à invenção, a cargo de cada mulher. Não é à toa que questionar-se sobre o que significa ser feminina é algo muito comum para elas. A figura da amiga, na qual a mulher se espelha e de quem imita não somente os aspectos físicos, o corte de cabelo, as roupas, mas também o jeito, o “ar”, ilustra perfeitamente essa busca do traço da feminilidade. A jovem Dora, que Freud atendeu para tratar de sintomas histéricos, é um caso clássico até hoje citado como exemplo do misto de fascinação e rivalidade de uma mulher em relação a outra. 

Construção da feminilidade

Em sua releitura da teorização freudiana do Édipo, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1980) ressalta alguns pontos importantes para a compreensão da feminilidade. Em primeiro lugar, distingue a castração em sua dimensão simbólica, como submissão às leis da linguagem, de sua dimensão imaginária, como temor da emasculação, sentimento de perda ou inferioridade. Define o falo como um significante, ressaltando o papel da linguagem na constituição do sexual no humano, que assim se diferencia da atividade reprodutiva dos animais. O que o significante fálico instaura é a dessimetria radical entre as posições masculina e feminina: dado que não há dois elementos simbólicos, um para cada sexo, homens e mulheres devem se reportar a um mesmo significante, o falo. A repartição simbólica dos seres sexuados não duplica simplesmente a divisão anatômica, mas organiza duas classes de seres que se referem, de maneiras diferentes, a um mesmo significante. Mesmo entre os casais homossexuais cada um dos parceiros assume comumente um papel que é facilmente reconhecido como masculino ou feminino. Ou seja, ainda que não haja distinção anatômica entre os parceiros, a diferença da posição sexual é instaurada pelo falo.

Segundo Lacan, as duas formas de se reportar ao falo podem ser compreendidas com o recurso dos verbos ser e ter. Inicialmente, o bebê, menino ou menina, seria tomado pela mãe como sendo o falo, investimento desejante necessário para seu advento como sujeito. Esse momento inicial deve ser transitório, uma vez que a permanência da criança assujeitada ao desejo da mãe traria conseqüências graves. É necessária, portanto, a intervenção do pai (ou de alguém que exerça a função paterna) como um agente a privar a mãe de seu falo e a criança de seu objeto incestuoso. Mas é somente em um tempo logicamente posterior que o pai ressurge como portador do falo que a mãe deseja e a situação edípica pode encontrar sua saída. O menino herdaria aquilo que Lacan chama de insígnias do pai, adquirindo uma “virilidade por procuração”. Desse modo, ele pode jogar com ter o falo como atributo viril, ainda que simbolicamente tenha passado pela castração. Quanto à menina, a passagem à posição feminina se daria pela via do não tê-lo, ao mesmo tempo que pode vir a sê-lo, o que lhe confere um enorme poder sobre aqueles que o têm.

A teorização lacaniana traz de imediato algumas implicações: a primeira é que macho e fêmea, na espécie humana, não são o complemento natural um do outro, como preconizam ainda hoje algumas teorias, ecoando um ideal tão antigo quanto o yin/yang. Porém, mesmo não sendo complementares, “masculino” e “feminino” não são categorias estanques, que possam ser pensadas isoladamente. Assim, a mulher tem seu desejo suscitado pelo falo que o parceiro possui, enquanto para o homem é ela que encarna o falo que ele deseja. 

É importante lembrar que a inexistência de um significante específico que venha a garantir a feminilidade torna a mulher particularmente sensível ao imaginário, ao mundo das imagens. Isso se manifesta não somente quanto à imagem do outro, do semelhante, como na relação de amizade com outra mulher, mas também no que diz respeito às imagens provenientes da mídia, que impõem padrões de beleza de forma superegóica. A medicina reconhece há tempos a alta incidência entre mulheres de quadros clínicos relacionados à excessiva preocupação com a imagem corporal, como a anorexia. 

Lacan frisa ainda o aspecto de construção do feminino ao inspirar-se em um artigo da psicanalista Joan Rivière para definir a feminilidade como mascarada, ou seja, um conjunto de artifícios que a mulher utiliza para parecer feminina aos olhos do homem. O papel do olhar aqui não deve ser negligenciado; é esse olhar que a mulher busca em seu parceiro como garantia de sua importância no desejo dele. Se pensarmos que o próprio eu é construído a partir do olhar do outro, que lhe confere consistência, podemos dimensionar o que representa para a mulher ser reconhecida como desejável por um homem.

A mulher no desejo masculino

Ao introduzir o conceito de objeto a, ao qual chamou de sua invenção, Lacan acentua a dissimetria entre as posições masculina e feminina. Na teoria lacaniana, trata-se do objeto fundamentalmente perdido, do qual o sujeito é separado em sua constituição e que representa a matriz de todos os objetos que ele vai desejar posteriormente na realidade, sendo denominado por isso de causa do desejo. Ainda que seja essencialmente imaterial, o objeto a pode ser materializado imaginariamente por alguns objetos; estes possuiriam a característica comum de serem parciais, em geral partes do corpo. O desejo masculino recorta imaginariamente no corpo da mulher esse objeto, o que faz com que ele não a deseje em sua totalidade, mas como objeto parcial. “Ao ter acesso ao lugar do desejo, o outro de modo algum se torna o objeto total, mas o problema, ao contrário, é que ele se torna totalmente objeto, como instrumento do desejo”, diz Lacan.

A percepção de que algo no corpo da mulher é tomado como objeto do desejo masculino pode provocar certa inquietação nela. Sobretudo na puberdade, com as modificações físicas, o surgimento dos caracteres sexuais secundários, a menina pode apresentar sinais de inibição, como a recusa em vestir roupas de banho para não exibir o corpo ou a adoção de uma postura curvada para esconder o aparecimento dos seios. Essa inibição sinaliza uma mudança, marcada pela consciência do olhar masculino que vê seu corpo como desejável. O que está em jogo aí é a passagem da condição de criança à de mulher que porta em seu corpo o objeto que causa o desejo para o homem. 

Mais tarde, ainda que possa aprender a jogar com esse objeto para provocar o desejo masculino, a mulher não deixará de manter certa estranheza em relação ao fato de portá-lo em seu corpo. É comum se perguntar o que exatamente suscita o desejo de seu parceiro. Se ela chega a formular a pergunta ao homem e este lhe responde com sinceridade, a resposta inevitavelmente a decepcionará. Afinal, o que seus lábios, seios ou nádegas têm de especial ou mais importante que seu próprio ser?

A mulher estranha o caráter fetichista do desejo masculino, assim como a clivagem que para o homem separa facilmente o desejo do amor, uma vez que para ela ambos convergem em um mesmo objeto. “Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada”, afirma Lacan. Sua estranheza maior, porém, diz respeito ao lugar de objeto que ocupa na fantasia do homem. 

Formas de existir

É nos anos 70 que Lacan cria um de seus aforismos mais polêmicos: “A mulher não existe”. Há sem dúvida certo gosto pela provocação nessa afirmação, porém ela não deixa de manter uma coerência teórica com a afirmação freudiana de que o inconsciente não reconhece a diferença dos sexos, mas apenas a dicotomia fálico/castrado. Portanto, o que Lacan afirma não existir não é a mulher em sua materialidade física, e sim o significante que definiria “A” mulher. Dessa forma, as mulheres são obrigadas, uma a uma, a construir sua versão da feminilidade sem um suporte simbólico.

A mulher, porém, ganha existência como ideal presente na criação artística – por exemplo, na literatura. Quando o poeta cria uma representação do feminino, ele confere realidade a esse ideal. Da mesma forma, o homem apaixonado quando toma sua amada como aquela que é capaz de preencher sua falta. Segundo Melman, “o amor é ele mesmo uma tentativa de fazer existir A mulher, a única, aquela sem a qual minha vida está perdida”. A distância entre esse ideal e a mulher da realidade pode ser verificada sobretudo na vida das musas ou sex symbols, que sofrem por encarnar, muitas vezes com conseqüências trágicas, esse ideal que ultrapassa suas limitações cotidianas. 

A maternidade seria outra forma de fazer existir a mulher, dessa vez contando com o aval da religião cristã, que cultua a figura materna. O problema é que essa seria mais uma maneira de encarnar o falo, restando para ela a sensação de que a feminilidade continuaria no horizonte. Além disso, nossa cultura, na atualidade, aponta tal vertente como limitadora e acena com outros modos de realização feminina.

É em torno dessa época que Lacan define masculino e feminino como dois campos nos quais os sujeitos podem se colocar independentemente de sua anatomia. Tais campos são constituídos por sua relação com o falo, aqui redefinido como função fálica. Os homens são totalmente concernidos pela função fálica, ou seja, eles são todos fálicos. Sua relação com o mundo é mediada pelo gozo fálico, que inclui o gozo sexual, porém não se resume a ele. As mulheres, por sua vez, não se restringem ao gozo fálico, embora participem dele tanto quanto os homens. 

Nesse sentido, elas seriam não-todas fálicas, ou seja, elas teriam acesso pleno ao gozo fálico, mas também a um gozo não-fálico, que Lacan qualifica como suplementar. Dessa maneira, ele relê o impasse de Freud, que não conseguia explicar totalmente a sexualidade feminina a partir do falo, admitindo que a feminilidade não diz respeito inteiramente ao falo e que ela só pode ser pensada considerando sua pertença a um campo não-fálico. A noção de um gozo suplementar é interessante porque, enquanto a teorização freudiana deu margem a críticas que acusavam a psicanálise de situar a mulher do lado do menos, a versão lacaniana nesse sentido a situa do lado do mais, mais de um gozo. Esse gozo, que Lacan chama de gozo Outro, não diz respeito ao sexo. Ele o aproxima, antes, do gozo místico dos santos, daquilo que está excluído da palavra, do inefável.

Lógica do desencontro

A feminilidade possui, portanto, algo de inapreensível ao homem, visto que não participa da significação fálica que organiza o universo masculino. Ela é organizada segundo uma lógica diversa, uma lógica do não-todo. Ainda que do ponto de vista da biologia homem e mulher sejam macho e fêmea da mesma espécie, buscam objetos diferentes e são regidos por lógicas diversas. Isso faz com que a mulher guarde, para o homem, uma dimensão de estranheza, que se traduz comumente no preconceito sob a forma das acusações mais diversas.

Lacan vai formular então outro aforismo polêmico: “A relação sexual não existe”. Na verdade, ele utiliza o termo francês rapport, que pode ser traduzido tanto por relação quanto por razão, no sentido matemático. Se há uma heterogeneidade radical entre os sexos, em que cada um se relaciona não com o outro, mas com um objeto diferente, então não há uma relação biunívoca, não é possível escrever uma razão entre eles. Isso coloca os desencontros da vida amorosa e sexual sob um novo ângulo, não mais como uma contingência a ser sanada por meio do esforço e da boa vontade dos parceiros, e sim como uma dificuldade decorrente dos efeitos da linguagem sobre a sexualidade humana. 

Para a mulher, seu corpo não é suficiente como garantia de acesso à posição feminina. Como ser da linguagem, ela não tem, assim como o homem, a receita pronta de uma sexualidade conforme a natureza. Porém, ao contrário de seu parceiro, que encontra a garantia de sua posição de homem em um elemento da própria linguagem, ela se ressente por não encontrar, como ele, um elemento simbólico que confirme sua condição de ser sexuado. Onde estaria exatamente a feminilidade: no corpo, na aparência, na sedução? 

As injunções que chegam à mulher provenientes do imaginário constituem um sucedâneo precário daquilo que para o homem é suprido pela referência fálica, além de variarem segundo o capricho da moda e das ideologias. O ideal contemporâneo em nossa cultura parece ser o da indiferenciação sexual. No entanto, o que a mulher possui simbolicamente é sua condição dehéteros, de diferença inassimilável pelo falicismo.

Imaginário masculino

No filme Neblina e Sombras, de Woody Allen, há uma cena em que a personagem de Mia Farrow foge dos maus-tratos de seu marido e é acolhida pelas prostitutas no bordel da cidade. Elas têm então um diálogo muito bem-humorado em que falam sobre as fantasias sexuais masculinas, que, vistas de fora, são esquisitas ou ridículas. 

Na acepção psicanalítica, a fantasia não é estritamente um roteiro de um jogo sexual, mas a relação entre o sujeito desejante e o objeto que causa seu desejo. É ela que sustenta a vida sexual e amorosa do sujeito que busca esse objeto na realidade. 

Para a mulher, o fato de um homem tomá-la como tal objeto é algo que a intriga; ela se esforça para entender o que significa ocupar esse lugar e muitas vezes tenta com sinceridade corresponder a ele, imitando seus gostos, suas preferências ou tentando ser como seus amigos homens, com os quais ele parece tão à vontade. Porém não pode evitar a sensação de despersonalização que a acomete, uma vez que se trata da fantasia dele, na qual ela ocupa o lugar de objeto. Ora, um objeto é, por definição, o contrário de um sujeito; não é alguém, é algo. Aquilo de que ela se ressente é da negação de sua subjetividade a que é exposta pela fantasia masculina. 

Desejo amortecido

Freud considera a inibição sexual na mulher resultado de um recalque excessivo da atividade masturbatória na fase edipiana. Já o psicanalista francês Jacques Lacan, em sua apresentação no Congresso sobre Sexualidade Feminina (1960), chega a afirmar que, se for levada em conta sua forma transitória, a frigidez feminina é praticamente genérica. Ressalta, porém, que ela é “relativamente bem tolerada” pelas mulheres, em comparação com a atitude dos homens diante da impotência. Lembra ainda que a frigidez deve ser compreendida no âmbito da neurose e que isso explica “sua inacessibilidade a qualquer tratamento somático – e, por outro lado, o fracasso corriqueiro dos préstimos do parceiro mais desejado”.

É interessante notar que tais observações são confirmadas nos dias de hoje pelo fracasso, até o momento, na criação de um equivalente feminino dos medicamentos para a chamada disfunção erétil – que, na realidade, não são afrodisíacos, apenas vasodilatadores. Ou seja, eles propiciam condições fisiológicas para o desejo sexual se manifestar, porém são ineficientes para gerá-lo. 

Diante do fenômeno, a psicanálise não propõe uma solução física, mas a compreensão da própria constituição do desejo. Se a frigidez é bem tolerada entre as mulheres, como afirma Lacan, é porque, para elas, não há clivagem entre desejo e amor. Assim, uma dificuldade referente ao desejo pode ser mais bem tolerada quando continua existindo um investimento amoroso no parceiro. 

O psicanalista francês Charles Melman, por sua vez, comenta que no início de sua prática clínica, há cerca de 50 anos, a frigidez tinha de fato um caráter quase genérico, mas que hoje, apesar de ainda existir, é cada vez mais rara. Ele atribui tal mudança a uma suspensão do recalque sobre a sexualidade devido a transformações culturais. De fato, a mulher tem atualmente a possibilidade de exercer sua sexualidade de uma forma que não era possível às pacientes de Freud. Isso mostra a plasticidade do sintoma e quanto ele não pode ser reduzido a mecanismos fisiológicos.


PARA CONHECER MAIS
A feminilidade: conferência XXIII (1923). S. Freud, em Obras completas, Imago, 1976, vol. 22.

Sexualidade feminina (1931). S. Freud, em Obras completas, Imago, 1976, vol. 21.

O seminário livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). J. Lacan. Jorge Zahar, 1999.

O seminário livro 20: Mais, ainda (1972-1973). J. Lacan. Jorge Zahar, 1982.

A significação do falo (1966). J. Lacan, em Escritos, Jorge Zahar, 1998.

Será que podemos dizer, com Lacan, que a mulher é o sintoma do homem? C. Melman. Tempo Freudiano, 2005.

Disponível em <http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_invencao_da_mulher_imprimir.html>. Acesso em 11 out 2012.